quarta-feira, junho 02, 2004

Florbela


Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte.
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida.
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber por quê ...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo prá me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Tortura


Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
- E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento! ...

Sonhar um verso d'alto pensamento,
E puro como um ritmo d'oração!
- E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento ...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!


A Flor do Sonho


A Flor do Sonho alvíssima, divina,
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína,

Pende em meu seio a haste branda e fina
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim! ...
Milagre ... fantasia ... ou, talvez, sina ...

Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?! ...

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh'alma
E nunca, nunca mais eu me entendi ...



Fanatismo


Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim" ..."



Realidade


Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorgeio de ninho ...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho ...

Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada ...
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho ...

Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci ...

Tens sido vida fora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei ... se te perdi ...

FLORBELA ESPANCA

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