quarta-feira, junho 16, 2004

Zona norte, zona sul


Georges Rouault
Título: "Mulher Nua Arrumando-se"
(Expressionista francês)


Aconteceu o seguinte: Vânia finalmente cedeu e concordou em
se encontrar com Rogério num apartamento em Copacabana.
Mas insistiu na segurança absoluta.
Ninguém poderia vê-la chegar ou sair do prédio.
Se o seu marido descobrisse, se o seu marido sequer desconfiasse...
Rogério jurou que ninguém a veria.

- A rua tem pouco movimento. O porteiro é pago por mim
para não enxergar nada. Os vizinhos de um lado só estão
em casa de noite. Os vizinhos do outro lado da rua
nunca aparecem.
Acho até que o apartamento está vazio. Não tem perigo.
Confia em mim.

Combinaram a Operação Encontro
- ou a Operação Até Que Enfim, como a chamou Rogério
- minuciosamente.
Ela diria ao marido que iria a Copacabana fazer compras.
Contando o tempo de ida e volta ao Grajaú, de ônibus,
eles teriam duas horas inteiras. Das seis às oito.
Ela chegaria ao prédio sozinha, de óculos escuros e
lenço na cabeça, e subiria ao seu apartamento.
Ele estaria esperando. Certo? Vânia ainda hesitou.
- Ai, meu Deus. O Antônio. As crianças...
Se alguém descobrir.

Ninguém ia descobrir. Ninguém ia vê-la.
Teriam duas horas maravilhosas. Longe do mundo,
longe dos olhos e das línguas do Grajaú.
Vânia suspirou e cedeu. Seis horas, então.

Às seis horas, Vânia bateu na porta do apartamento
de Rogério.
Além dos óculos escuros e do lenço na cabeça,
usava a gola do casaco virada para cima e
uma manta tapando o nariz e a boca.
Todos tinham se virado na rua para olhar
aquela mulher tão agasalhada, apesar do calor,
e esforçando-se para não ser notada.

Ela estava nervosa. "Ai meu Deus! Se o Antônio sabe..."

Rogério a acalmou. Levou-a para o quarto.
Começaram a tirar a roupa.
Nisso, ouviram um rebuliço no corredor. Gritos, correria.
Vânia arregalou os olhos.

- É o Antônio!

- Não pode ser. Calma. Vou ver o que é.

Rogério já estava no meio da sala, de cuecas,
quando ouviu baterem na porta. Com violência.
Hesitou. Não podia ser o marido. Impossível.
E aquela barulheira...
Só se ele tivesse trazido todo o Grajaú com ele.
Uma expedição punitiva pela honra do bairro.
Vou ser linchado, pensou Rogério.
Desmembrado pela classe média.
Um mártir da nova moral.
O primeiro santo pagão da Zona Sul...
E então, entre batidas mais fortes na porta, ouviu:

_ Abra! É a polícia! Abra senão arrombamos a porta!

Rogério abriu a porta. Foi jogado contra a parede
por uma avalancha de homens armados de metralhadora,
aos gritos. ?Revistem tudo. Vejam na cozinha! Rápido!!
Rogério gritou mais alto. Queria saber do que se tratava.
O inspetor disse que tinham invadido o apartamento do Gatão,
ao lado do seu, mas ele conseguira fugir pela área de serviço.
Estava ali. E eles o pegariam. Gatão,
o bandido mais procurado do Rio. Desta vez não escaparia.

Os policiais que entraram no quarto abriram a porta
de um armário e encontraram Vânia, seminua e apavorada.

- Aqui está ele! - gritou um policial, exaltado,
antes de se dar conta que não era o Gatão,
era uma mulher, e soltá-la.

Vânia saiu correndo do quarto.
Atravessou gritando a sala sem saber se tapava o rosto
ou os seios. Entrou na cozinha e caiu nos braços do Gatão.

Quando Rogério e o inspetor irromperam na cozinha atrás dela,
Gatão a segurava pelas costas e tinha
a ponta de uma faca encostada na sua garganta.

- Mais um passo e eu furo! Mais um passo e eu furo!

O inspetor fez um gesto para deter
os policiais que entravam na cozinha. Falou:

- Certo, Gatão. Certo. Não fura a dona. Vamos conversar.

Gatão mandou todo mundo sair da cozinha.
Se comunicaria com eles por intermédio de Vânia.
Enfiou a cabeça de Vânia pela porta entreaberta
da cozinha e mandou que dissesse que ele
exigia um carro para sair dali. Senão a degolaria.
Vânia gaguejou. Não conseguia falar. Rogério disse:

- Calma, Vânia. Calma. Confia em mim.

Vânia finalmente conseguiu transmitir a exigência
do bandido. O inspetor mandou dizer que estava certo.
Providenciaria o carro. Mas precisava de tempo.
Chegaram fotógrafos e repórteres. Quando Gatão
empurrou a cabeça de Vânia para fora da cozinha
outra vez, já havia uma equipe da TV com câmara
portátil e refletores dentro do apartamento.

- E-ele di-diz que espera cinco minutos e s-só!
- disse Vânia, apertando os olhos por causa dos refletores.

O repórter da TV colocou um microfone perto da sua boca.
Gatão puxou Vânia para dentro da cozinha. Os repórteres
entrevistaram Rogério. Quem era a moça?
Uma amiga...? Namorada? ?Mais ou menos?.
O inspetor mandou dizer ao Gatão que o carro estava pronto.
Gatão saiu da cozinha com um braço em torno da cintura nua
de Vânia e com a faca no seu pescoço.
Se alguém se mexesse, ele furava.

- Calma, Vânia. Calma. Confia em mim -
disse Rogério. Tinha os olhos arregalados.

Gatão desceu com Vânia pela escada.
A câmara da TV seguiu atrás. Na rua havia uma multidão.
Um policial ia na frente afastando os curiosos.

- Para trás, senão ele fura a dona!

- É o Gatão! É o Gatão. Esse ninguém pega.

Gatão entrou com Vânia no carro.
Mandou que o carro arrancasse.

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No Grajaú, as crianças gritaram:

- Papai, olha a mamãe na televisão!

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Em algum ponto do Estado do Rio,
Gatão mandou que o carro parasse.
Deu ordens ao chofer para apagar os faróis,
esperar 15 minutos e depois dar o fora.
Senão ele furava a Vânia.
Desceu com Vânia do carro e a puxou
através de um matagal na escuridão.

- Eles nunca vão me pegar. Nunca. Vou desaparecer.

Quando Gatão largou o pulso de Vânia
e disse que ela estava livre e que arranjasse
uma maneira de voltar para casa, Vânia pensou
no Antônio, pensou no Grajaú, e suplicou:

- Me leva com você! Me leva com você!

Hoje vive com Gatão em Rezende e jamais o trai.
Aprendeu sua lição.

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Ou então: Vânia só chegou em casa no outro dia de manhã.
Pronta para tudo. Pronta para morrer.
Merecia tudo que o Antônio faria com ela.
Na calçada, em frente à sua casa,
ouviu o comentário de uma vizinha:
- Aí, hein, Vânia? Na televisão.

As crianças vieram correndo, excitadas:

- Mamãe! Você apareceu na televisão!

E atrás das crianças veio o Antônio,
orgulhoso, sorridente.

- Na televisão, hein? Sim senhora. Parecia a Dina Sfat!



Prosa


Luis Fernando Verissimo


É um dos melhores, mais prolíferos
e populares cronistas brasileiros contemporâneos.
Filho do escritor Érico Verissimo,
iniciou sua carreira jornalística em 1966
no jornal Zero Hora, onde trabalhou como
copidesque, redator e editor antes de assumir
uma coluna diária em 1969. No início da carreira,
trabalhou também como tradutor e redator
de textos publicitários. A partir de 1970,
iniciou colaboração com a Folha da Manhã,
mais tarde Folha de S. Paulo. Seu primeiro
livro, O Popular, uma coletânea de crônicas
e cartuns, saiu em 1973. Na década de 1980,
publicou vários livros que se tornaram best-sellers,
como O Gigolô das Palavras (1982)
e O Analista de Bagé (1981), que em 1995
chegou à centésima edição com mais de 500 mil
exemplares vendidos. Na televisão, escreveu
quadros para o programa humorístico Planeta
dos Homens, exibido pela Rede Globo na década
de 1970, e, mais recentemente, para a série
Comédias da Vida Privada, baseada em histórias
de sua autoria. Em 1988, publicou O Jardim do
Diabo, seu único romance. Ao conjugar o pensamento
cristalino com uma escrita ágil e precisa, suas crônicas
percorrem temas que vão do comportamento cotidiano
à literatura, do esporte à política, em tons que
variam do humor ligeiro aos momentos de amargor
e desilusão com as iniqüidades da sociedade brasileira.

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